Por Dorian Vaz, de Guaribas (PI), para o Instituto Fome Zero/Foto: João Paulo Guimarães
Era abril de 2022. A blindagem erguida pelo Programa Fome Zero (PFZ) contra a miséria e a pobreza em Guaribas, no Piauí, mostrou resultados alentadores. A cidade piloto do PFZ deixou a fome no passado e hoje ergue-se sobre uma base econômica e social mais humana e fraterna, mais dinâmica e inclusiva.
O arcabouço de políticas públicas implantado pelo PFZ fez a população desfrutar de uma melhor qualidade de vida e de novos direitos antes escondidos debaixo do tapete da miséria. Guaribas resiste, à sua maneira, com as limitações comuns das cidades brasileiras miseráveis e, aos poucos, vem vencendo o flagelo da fome e da pobreza.
A despeito da volta do Brasil ao Mapa da Fome e aos mais de 33 milhões de brasileiros que não têm o que comer a Guaribas celebra hoje o fato de que nenhum morador morre mais em decorrência da fome. A população se agarra ao que sobrou das políticas públicas do Fome Zero e toca a vida como se o futuro fosse o agora. É que o passado reteve na memória desse povo muita dor e sofrimento. A cidade carregava o terceiro menor IDH do país (0,214 em 2000) e parecia que a fome era, ao mesmo tempo, a causa e a consequência da pobreza.
Com uma população de 4.814 moradores, a maioria vivendo em situação de vulnerabilidade social, Guaribas era carente de todos os serviços básicos. Em 99,8% das moradias não tinha coleta de lixo e 99% não possuía banheiro ou sanitário. Das 942 casas existentes na sede, apenas 20% tinha acesso à energia elétrica. As ruas não eram calçadas e nem arborizadas. Nove em cada dez famílias viviam com até um salário-mínimo, das quais 28% recebiam menos de meio salário-mínimo e 65% ganhavam entre meio e um. Ou seja, mais de 90% dos moradores eram pobres ou muito pobres.
A escolaridade era muito baixa: cerca de metade da população não tinha nenhuma instrução. A mortalidade infantil, em decorrência da fome, era de 35,7 mortos por mil nascidos vivos. Uma em cada cinco crianças com menos de 1 ano apresentava quadro de desnutrição e a proporção de crianças menores de 2 anos com diarreia era de 16%.
Essa Guaribas ficou distante. A incursão do Fome Zero na cidade logo mostrou que era preciso assegurar o desenvolvimento social e econômico, gerar emprego e renda, cuidar da saúde e da educação das famílias, garantir o acesso à água, aumentar a produção local de alimentos, dinamizar o comércio e criar as condições para o alcance da tão sonhada cidadania. Não seria, não foi – e não é – uma tarefa fácil.
A primeira ação para acabar com a fome foi a implantação dos programas de transferência de renda direta – com condicionalidades – como o Programa Cartão Alimentação (PCA) substituído, posteriormente, pelo Bolsa Família, que até 2016 tinha atendido a 960 famílias no município. O programa foi substituído atualmente pelo Auxílio Brasil.
– Caminhei 48 anos nu e descalço. Fomos libertados em 2003. Nossa vida está muito melhor e não passamos mais fome, comemorou seu Edmir, o trabalhador rural que permaneceu na lida árdua da roça, mas em condições muito mais dignas.
O avanço inegável no IDH do município que, em 2010, era de 0,508 – mais do que o dobro do índice de 2000 – confirma reparações importantes nas condições de vida da população local. Na área de saúde, por exemplo, o acesso foi universalizado. De acordo com a assistente social Joara Evangelista, do Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), há três anos dois médicos moram no município e examinam também a população dos povoados, que conta com consultas semanais nos dois Postos de Saúde, que foram reformados, no Brejão e no Cajueiro, e outro construído na Lagoa do Baixão. No passado, os médicos não viviam em Guaribas e só consultavam os pacientes uma vez por semana, ou de 15 em 15 dias.
Outras iniciativas na área de saúde são relevantes, como o cuidado com as gestantes e o zelo com os bebês que refletiu, rapidamente, na redução da mortalidade infantil. No ano 2000 a taxa era de 60 mortos por 1000 nascidos vivos, valor que caiu para 41 mortos por 1000 nascidos vivos, em 2006, (98 nascidos vivos e 4 óbitos de crianças com idade menor que 1 ano) e que foi zerado em 2020 (69 nascidos vivos e nenhuma morte de criança com idade menor que 1 ano).
Em janeiro de 2022, 44 gestantes estavam sendo assistidas por atendimento médico, uma grande conquista, uma vez que as mulheres, antes de 2003, não desfrutavam de assistência médica durante a gestação e o parto. O cuidado com as gestantes e o acesso maior aos alimentos colocou fim à mortalidade infantil causada pela fome, o que indica que a junção dos programas de assistência médica com as políticas de segurança alimentar e nutricional podem, sim, salvar vidas.
A morte precoce dos “anjinhos” era constante. Dona Valda, proprietária do Hotel Ferreira, o primeiro a ser inaugurado na cidade, ainda em 2003, relembrou as cenas melancólicas do passado. “Era muito triste ver caixões passando com os anjinhos. Muitos nem tinham nome. Como as mamães não comiam, eles também não se alimentavam”. Essa cena, felizmente, saiu do ar.
A área da Assistência Social também não existia antes do Fome Zero, informou Joara. “Hoje somos duas assistentes, três pessoas da equipe do Cadastro Único (contratadas pelo município) e oito profissionais do Programa Criança Feliz”. O Programa atende a crianças carentes de até 3 anos e as que pertencem às famílias que recebem o Benefício de Prestação Continuada (BPC), de até 6 anos.
– Guaribas nem sabia o que era Assistência Social. Melhoramos muito, mas assim como no resto do Brasil, ainda temos desigualdades sociais e econômicas, pobreza, desemprego e concentração de renda, lembrou Joara. “A vida que a maioria leva hoje não tem comparação com o passado: Hoje estamos infinitamente melhor, não tem mais fome, temos lazer e os nossos filhos têm acesso a políticas públicas que não existiam por aqui”.
Na educação, a cidade se orgulha dos seus “filhos doutores”. Dona Lídia, mãe do jovem advogado Natanael, encheu a boca para falar do filho, que em 2011, foi cursar Direito em uma faculdade de São Paulo, depois de obter a pontuação necessária, por duas vezes, para passar no Enem. Anteriormente, ele foi assistido pelo Bolsa Família e depois pelo Programa Universidade Para Todos (PROUNI).
– Graças às políticas públicas, meu filho saiu da roça . Com o dinheiro do Bolsa Família consegui formar o Natanael, comemorou dona Lídia.
Sem o leque de oportunidades conquistado pelo povo de Guaribas seria muito difícil vencer a desigual disputa entre os que têm muito e outros que quase nada possuem. Os que se formaram são poucos. O analfabetismo ainda é grande. Para muitos, segurar um lápis é mais difícil do que agarrar-se a um cabo de enxada. Por essas e por outras, é imperativo fortalecer a rede de proteção social de Guaribas.
Os serviços sociais básicos de infraestrutura também evidenciam avanços importantes. Os dados comparativos são referentes a 2010, quando foi realizada a última contagem do Censo Demográfico no país. O sistema de esgotamento sanitário adequado atendia, em 2010, a quase 30% das residências; o percentual de domicílios com banheiro ou sanitário, que era praticamente inexistente em 2000, já havia passado de 32%; o percentual de domicílios ligados à rede de energia elétrica, que era de 20%, em 2000, subiu para 78%, e os domicílios ligados à rede de abastecimento de água, que eram inexistentes em 2000, atingiram 43% em 2010.
– “Ninguém aqui vivia, a gente existia, empurrando com a barriga e levando a vida adiante porque não tinha outro jeito”, resignou-se seu Dermival, ao lado da sua esposa dona Marilene.
O aposentado, que em 2003 vivia em uma precária moradia de taipa, estava terminando a construção da casa com a ajuda da filha que vive em São Paulo. E tinha um sonho: ver a neta Karina se formar em medicina.
As casas, que eram de adobe e palha, foram substituídas por moradias de alvenaria. As primeiras 66 casas foram entregues pelo Fome Zero ainda em 2003. Outras 68 foram contratadas pelo Programa Minha Casa, Minha Vida, mas apenas 38 tinham sido entregues até 2022.
A construção das novas moradias mudou a paisagem da cidade. As praças ganharam cores, árvores e as ruas estão asfaltadas. Dois hotéis abriram suas portas na cidade: o Felipe e o Terraço.
Eldiene e o seu companheiro Irineu são os proprietários do Hotel Terraço, inaugurado em 2016. O Hotel conta com sete suítes pequenas funcionando – três delas com ar condicionado – e mais oito prontas para entrar em operação. Tudo muito simples e modesto, mas impensável na Guaribas de 2003. Antes de inaugurar o hotel, Eldiene pediu o cancelamento do Bolsa Família. Ela é daquelas que não deixa de montar em cavalo encilhado: se formou em todas as oficinas ministradas pelo Fome Zero e hoje vende os salgados que aprendeu nos cursos.
Água é vida
Foto: João Paulo Guimarães
À coleção de transtornos dos moradores de Guaribas se somava o problema mais grave: eles não contavam com o abastecimento de água.
– “Água é vida, sem ela nada vinga” , explicou seu Almi, que durante anos comandou a distribuição de água entre as famílias do núcleo urbano de Guaribas.
A chegada de água potável nas torneiras foi a grande revolução nessas terras, antes submersas em pó marrom. Hoje, todas as casas da cidade e de quase todos os povoados têm água jorrando das torneiras, ainda que o fornecimento seja racionado em algumas comunidades.
As cisternas foram por muito tempo a única forma de garantia de acesso à água. O Fome Zero incentivou a construção dos reservatórios em parceria com a Articulação do Semiárido (ASA), Cáritas e com a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban). A meta era a edificação de um milhão de cisternas no semiárido brasileiro, o P1MC. Quase todas as casas do município contam com o reservatório apesar de a maioria delas ter água encanada.
O Programa foi bem sucedido, mas como explicou o ex-governador Wellington Dias (PT), as cisternas não podem ser a fórmula permanente de acesso à água e nem serão.
– A construção de centenas de cisternas foi necessária, mas não é a solução definitiva. Elas exigem manejo e limpeza e não significa que as famílias que usam o reservatório tenham segurança hídrica. A Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que ter segurança hídrica é ter água bem tratada, de qualidade e em quantidade suficiente, salientou.
O ex-governador lembrou que “a concentração injusta nas mãos de poucos fez da água propriedade de uma minoria e privou a população do sertão brasileiro de matar as suas reais necessidades”.
Acabar com a seca! Este era o brado dos coronéis do Nordeste e dos governos do Brasil. E não foram poucas as ações de “combate à seca” em detrimento de iniciativas para a convivência com os fenômenos naturais. Não se acaba com a seca, convive-se com ela. E não é possível culpar a seca pelas mortes recorrentes nas décadas passadas.
A estiagem não mata, quem mata é a fome. O frio não mata, quem mata é a falta de cobertor e de acolhimento. E o que mais mata é a péssima distribuição de renda e de alimentos, que cria um fosso abissal entre ricos e pobres, e entre famintos e saciados. E Guaribas é o exemplo vivo de que a maior causa mortis continua sendo a ganância de alguns e a ausência total do Estado.
Um sonho iluminado
Foto: João Paulo Guimarães
O acesso à energia elétrica foi assegurado pelo Luz para Todos que iluminou quase a totalidade da população. Até 2015, 596 casas desfrutavam da energia elétrica. A Internet, por sua vez, conectou os cidadãos de Guaribas com o resto do mundo.
Dez supermercados, oito mercearias e dois hortifrútis ofertam produtos industrializados, verduras, legumes e frutas. A construção civil conta com cinco lojas na cidade. Outros dois que vendem móveis e mais sete de roupas, maquiagens e perfumarias se somam ao incipiente comércio local. Carros e motos já podem ser consertados em Guaribas: há nove oficinas disponíveis.
O Cadastro Central de Empresas, do IBGE, revelou que em 2019 havia 42 empresas em Guaribas que empregavam 280 pessoas com um salário médio mensal de dois salários mínimos. Um outro indicador, relacionado ao maior poder de compra da população local, diz respeito ao número de veículos registrados no município de Guaribas. De acordo com os dados do IBGE de 2021 sobre veículos automotores, havia um total de 834 veículos, com destaque para 570 motos, 116 caminhonetes, 98 automóveis e 50 outros veículos. Em 2006, havia um total de 83 veículos no município (10 vezes menos que o registrado em 2021), sendo 77 motos, 2 caminhonetes, 1 automóvel e 3 outros veículos.
O cooperativismo ainda resiste. Na casa de farinha do povoado de Zé Bento, os 29 cooperados continuam com o mesmo espírito de solidariedade de sempre. A safra começa em junho e o trabalho das mulheres redobra no meio do ano. São elas que descascam as raízes da mandioca, ralam e espremem a massa para fazer o polvilho.
Mais renda e mais cidadania
Foto: João Paulo Guimarães
Com a implantação das políticas públicas e a injeção de recursos, a melhoria dos indicadores sociais e econômicos começou a ser percebida ainda em 2003. E não há dúvida de que a renda maior circulante na cidade melhorou bastante a vida de todos.
Essa evolução despertou os sentimentos de dignidade, felicidade e autoestima, nem sempre mensuráveis pelos indicadores tradicionais disponíveis nas estatísticas oficiais. Mas nas falas do povo é claramente observada essa mistura de sensações comprovando que a Guaribas, que completou 28 anos no ano passado, não pode ser comparada com a Guaribas de 2002.
Houve melhorias em todos os indicadores sociais e em todas as áreas, comemorou o ex-governador Wellington Dias. “Em qualquer aspecto Guaribas está melhor. Hoje, a cidade é menos desigual, a escolaridade média aumentou, o analfabetismo foi reduzido nas gerações mais jovens, a renda subiu e a expectativa de vida foi ampliada”.
A rede de proteção social em Guaribas tratou do ser humano desde a sua concepção até fechar o ciclo da vida. “O ser humano foi colocado no centro de tudo”, explicou o ex-governador.
– “Nos preocupamos com as pessoas desde o útero da mãe até o envelhecimento. Demos prioridade também no atendimento aos deficientes e aos que têm particularidades e toda uma história de negação como ser humano, a exemplo dos quilombolas e dos indígenas. É esse o resumo, cuidamos do ciclo inteiro, do nascimento ao fim da vida”.
O prefeito da cidade, seu Joércio, o Paizim, tinha certeza de que Guaribas continuaria “esquecida, isolada e invisível”, se não fosse a opção dos governos federal e estadual de aportar na cidade não apenas recursos financeiros, mas também a confiança e a expectativa de que era possível construir uma cidade melhor, mais igual, mais inclusiva e com menos fome.
Ele tem razão. A fome foi vencida. Até a carne está disponível e é desossada a céu aberto. Em pelo menos três esquinas do núcleo urbano pode-se comprar carne de gado recém-abatido. Não estava acessível para a cidade inteira, mas a carne integra hoje as refeições e as porções servidas em dezenas de restaurantes e bares.
– “Ninguém aqui podia comer. Nós passávamos mais fome do que cachorro. Os meninos morriam porque não tinham com o que se alimentar. Sofri para criar meus filhos catando carocinho de feijão, disse dona Marilene, afirmando que hoje come “até carne”.
Seu Nélio, com uma faca prá lá de afiada, desossava as mantas de carne no meio da rua. Uma rês inteira era vendida antes de chegar o entardecer. O povo, já acostumado com a nova iguaria, enfumaçava a cidade com as carnes fumegando sobre o carvão.
A felicidade desse povo com cada pedacinho de conquista contradiz com a aspereza da vida que ainda levam. Mas tudo que é comparado com antes de 2003, vira superlativo, dada à fragilidade e a situação extremamente adversa vivida pela população até princípios deste século XXI.
Novos negócios
Foto: João Paulo Guimarães
A galinha caipira com arroz e pirão já estavam servidos no bar de Lucielma e Laurindo, no povoado Regalo no início da noite. Lucielma, a exímia cozinheira, também revendia roupas e outro apetrechos para a casa, cozinha e banheiro. Ela e o marido são proprietários do boteco que funciona na varanda da casa. A soma dos trabalhos e da renda colocou mais alimento na mesa do casal e de seus dois filhos.
– A comida de dois tinha que servir a dez. Conseguimos vencer essa dura realidade durante os 16 anos que moramos em Guaribas. Nossa vida hoje é muito melhor, orgulhou-se Lucielma.
No meio do caminho de volta para a sede encontramos com o caminhão de Pancadão e Tigrão estacionado na cidade. Os dois abriram a “porta de felicidade” e, em poucos minutos, as pessoas trocaram o descanso nas soleiras pela procura de quinquilharias que lhes dão algum trocado. De três em três meses os camelôs visitam Guaribas. Já têm a clientela formada: vendem em dois ou três dias o estoque e retornam, trimestralmente, para buscar o percentual apurado. E tem camelô quase todos os dias.
A remuneração das mulheres vem, principalmente, do trabalho informal como sacoleira, doméstica e faxineira. Cerca de dez manicures montaram seus próprios negócios. O grosso da população masculina e feminina vive do emprego público da Prefeitura e dos recursos dos programas de transferência de renda. A maioria dos pequenos comércios, como bares e restaurantes, geralmente funcionam na própria moradia.
O Restaurante Bode Assado, da Nildeni e do Dirno fica aberto enquanto tiver cliente. Em meio à jogatina de dominó – que é trivial em quase todas as esquinas – são servidas as cervejas, sempre geladas, acompanhadas de galinha caipira, carne de sol e churrasco. Nunca vi tanta carne ser consumida em Guaribas!
Apatia e esperança
A vivência em municípios tão carentes como Guaribas transforma qualquer pequeno avanço em uma enorme conquista. Políticas públicas básicas ganham status de desenvolvimento. Um simples olhar para o povo, parece um presente divino. O direito se confunde com concessão. Apesar dos inúmeros avanços, é inaceitável que em um país tão rico como o Brasil continue existindo centenas de Guaribas.
Infelizmente, tem muita coisa ainda para consertar. O esgoto corre a céu aberto. O mercado público, construído para a venda de produtos da agricultura familiar, continua fechado e se desfazendo pela ação do tempo. Da mesma forma, o Memorial Fome Zero, a Pousada e a Padaria, construídas pela então Secretaria Estadual, que cuidava exclusivamente do PFZ, permanecem trancados.
No entanto, não se pode desprezar as décadas de clientelismo que orientavam e ainda orientam a ação política no Brasil, sobretudo, em cidades cujas populações são mais vulneráveis. A cultura enraizada pelo clientelismo em nada contribui para a emancipação dos usuários das políticas sociais, especialmente, os mais pobres. Um cenário difícil de ser modificado, uma vez que o voto tem preço, nem sempre é pago, mas continua à venda e é caro.
A estrada que liga Caracol a Guaribas está asfaltada. A conquista é da população, que há anos reivindicava a obra. A rodovia aproximou Guaribas de outras cidades, melhorou o fluxo de produtos e serviços, mas não conseguiu deter o aumento no preço dos alimentos.
A inflação e a carestia chegaram em Guaribas e junto vieram o baque e o sofrimento para aqueles que pensaram que nunca mais ouviriam o estômago roncar de fome. “ Agora estamos regredindo outra vez. Isso deixa a gente inseguro, temos dois filhos para dar de comer”, lamentou Laurindo, que sentia o movimento do bar diminuir a cada dia.
E é assim, a inflação castiga o mais pobre e tira o alimento da mesa de quem mais precisa. E deixa apreensivo os que já se sentiam libertos da pobreza extrema. O preço dos alimentos aumentou muito nos últimos meses e a qualidade da alimentação piorou.
Mas a resiliência, materializada na esperança dessa gente – que quer distância do passado – é o que faz permanecer ainda algumas políticas públicas e alguns equipamentos sociais. A teia sustentada por muitas mãos não deverá sucumbir ao bel prazer dos governantes, que não enxergam o ser humano como o ator principal de qualquer projeto de desenvolvimento e de transformação.
Mas ainda tem muita esperança para virar verdade. O garoto Yuri, de apenas 12 anos, consumia seu tempo com leitura. Atitude que chama a atenção dos hóspedes do Hotel Terraço. Quis me aproximar do menino, filho dos donos do Hotel, que foi o meu guia mirim até o último dia de estada no município. Na noite da despedida ele me devolveu o livro “Lula”, de Fernando Morais, porque queria ganhá-lo novamente, dessa vez, com autógrafo do biografado.
As lágrimas escorriam sobre a face do belo e vaidoso garoto. Deu-me um abraço apertado e entregou-me uma carta: “Leve para o Lula, dê um jeito de entregar isso para ele”, como se fosse fácil essa missão e como se eu fosse íntima de Lula. Entreguei a missiva ao ex-governador Wellington Dias para ser o porta-voz de Yuri.
E da carta ficou em mim o resumo do sentimento comum em Guaribas: “milhares de sonhos a serem realizados”. Yuri e a menina Karina buscam o mesmo sonhar: querem ser médicos. Saí de Guaribas com uma forte esperança e a enorme torcida de que o desejo dos dois se concretize e ajude a melhorar a vida de muitos. E também com o sonho de que a cidade não seja mais esquecida.