Ao som “Do meu coração nu”, álbum contestador do pernambucano Zé Manoel, leio a entrevista concedida pela professora eleita reitora da Uern, Cicília Maia. Para começar, logo penso em que foto destacar e não poderia ser outra senão uma com seu sorriso a transparecer sua essência: Cicília sorri por inteiro, a todo tempo, porque assim revela, através de seu carisma, a honestidade de sua alma e a força que tem para encarar o protagonismo a que se propôs. Não será fácil conduzir uma universidade no que torcemos já ser um período pós-pandemia. Porém, disposição e coragem não lhe faltam.
Cicília Raquel Maia Leite é natural de Mossoró/RN. Graduada em Ciência da Computação pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN (2003), é Mestre em Engenharia Elétrica, pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG (2005), Doutora em Engenharia Elétrica e da Computação, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN (2011), e possui Pós-Doutorado no Massachusetts Institute of Technology – MIT/EUA (2013).
Servidora efetiva da UERN desde 2006, é professora Adjunta IV, lotada no Departamento de Informática, Faculdade de Ciências Exatas e Naturais (FANAT), no Campus Central, onde ministra aulas no curso de graduação em Ciência da Computação. Professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Computação – Associação Ampla UERN/UFERSA, tem experiência em pesquisas em Engenharia de Software, Informática Médica e Tecnologias Assistivas.
Em seu currículo extenso, há espaço ainda para a experiência no campo da gestão universitária. Desempenhou funções diversas na UERN. Foi Assessora de Captação de Recursos e Diretora de Pesquisa e Inovação da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação; Pró-Reitora de Recursos Humanos e Assuntos Estudantis (PRORHAE); Subchefe do Departamento de Informática – DI/FANAT; Diretora da Diretoria de Admissão, Registro e Controle Acadêmico da Pró-Reitoria de Ensino de Graduação – DIRCA/PROEG; Assessora Técnica da Reitoria; e atualmente exerce a função de Chefe de Gabinete da Reitoria da UERN.
Cicília Maia se prepara agora para exercer talvez o papel mais importante de sua história dentro da Universidade, o de reitora, em uma instituição comandada há décadas por homens. A posse acontecerá na Assembleia Universitária que celebra os 53 anos da Uern, em setembro.
A seguir, ela nos fala um pouco de sua trajetória e dos planos que tem para transformar vidas através da educação.
Pop Up: A senhora é egressa da própria UERN. Em algum momento ali, nas cadeiras da graduação, imaginava o posto que lhe compete hoje?
CM: Tenho muito orgulho da minha história e da minha vida. Quando entrei na graduação, em 1999, não imaginava isso. Mas, ser egressa da Uern me oportunizou estar onde estou hoje. Minha vinculação com a Uern começa com minha mãe. Ela é egressa de dois cursos, e é professora e enfermeira. Ela sempre falou com muito amor sobre a Uern. E nos bancos da Uern tive a oportunidade de ter excelentes mestres que me apresentaram o poder de transformação da Uern e me fizeram enxergar onde eu poderia chegar.
“Somos fortes o suficiente para mostrar, com a nossa dedicação, trabalho e coragem, que conseguimos vencer qualquer preconceito”
Pop Up: E por falar em graduação, sua formação ainda remete ao universo de dominação masculino. Como foi para senhora, no tempo de sua graduação, forma-se em informática sendo mulher, havia desconfiança da competência nesse tempo?
CM: Verdade. Estamos em uma área predominantemente masculina. Se eu disser que não houve, estou mentindo. Houve sim, mas nada que atrapalhasse ou desestimulasse. Sempre tinha aquelas “piadinhas”, mas eu desconsiderava pois tinha um foco e sabia o que queria. Somos fortes o suficiente para mostrar, com a nossa dedicação, trabalho e coragem, que conseguimos vencer qualquer preconceito e somar forças para combater este tipo de comportamento tão prejudicial.
Para superar estes desafios, contei e tive a influência e inspiração de muitas mulheres importantes. Tive professoras nos cursos de graduação, mestrado e doutorado que são referências para mim. E hoje, saber que sou referência na vida de muitas de nossas alunas, me deixa muito feliz. Poder estimular e impactar a vida de tantas outras meninas através da educação, através de uma universidade que transforma sonhos em realidade, é motivo de orgulho. Essa é a nossa missão, fomentar e atrair mais meninas para a universidade, para a ciência, para uma educação de qualidade.
‘Temos o compromisso com a equidade de gênero no comando na nossa gestão, ampliando e abrindo espaços para as mulheres’
Pop Up: Pergunto isso porque, apesar do século que vivemos, vemos a sociedade retroceder em vários aspectos. O respeito à mulher e a paridade é um dos casos. Misoginia, machismo, sexismo, etarismo, violência física ou verbal. O patriarcado sempre existiu, mas está exposto de forma muito vil. Vemos mulheres violentadas de diversas formas a todo instante, talvez como a mídia nunca tenha mostrado antes. Diante desse cenário, como a senhora avalia seu papel de gestora, reitora de uma das mais importantes universidades do Nordeste, a representação que sua figura pode promover, ainda mais depois de sucessivas gestões comandadas por homens?
CM: Na condição de educadora e pesquisadora, assumimos todos os dias a missão de fortalecer o desenvolvimento científico na universidade e nas escolas, inspirando meninas para transformarem seus sonhos em realidade.
Falando como reitora eleita, a nossa vitória contribui para construção e afirmação da imagem social positiva das mulheres no protagonismo e na possibilidade de assumir cargos de comando. Na UERN tivemos duas reitoras até hoje. A última foi no século passado, há mais de duas décadas. Mais recentemente tivemos a professora Fátima Raquel assumindo a reitoria e liderando a universidade em um dos momentos mais difíceis, que foi durante a pandemia da Covid-19. Assim, acredito que posso contribuir com a luta constante e mais recente por presença e protagonismo em todos os setores da universidade, e dentre eles, a gestão. Temos o compromisso com a equidade de gênero no comando na nossa gestão, ampliando e abrindo espaços para as mulheres. Também trabalharemos para fomentar editais específicos para estimular o envolvimento de nossas estudantes na ciência; além de estimular projetos de pesquisa e extensão que tratem da temática visando ampliar a inserção das mulheres.
Pop Up: Nesse sentido ainda, de que forma a UERN pode contribuir no combate à violência contra a mulher?
CM: Essa é uma pauta sempre presente na Uern. Recentemente instituímos a Comissão Uern Mulher, com o objetivo de mapear, acompanhar e propor políticas de enfrentamento deste grave problema social. Infelizmente, estamos em 2021 e ainda precisamos tratar desse tema, e a Uern nunca se furtou da luta pela preservação dos direitos das mulheres.
Desenvolvemos, através das faculdades de medicina e enfermagem, ações de acolhimento das mulheres vítimas de violência, inclusive de mulheres trans, que na maioria das vezes se tornam invisíveis para a sociedade. Na área da pesquisa, podemos destacar o trabalho primordial do Núcleo de Estudos sobre a Mulher, da Faculdade de Serviço Social, e da Faculdade de Direito. Em nossa gestão vamos dialogar com a comunidade para criar novos mecanismos e políticas de proteção à mulher e de combate à violência e assédio.
Pop Up: E vou um pouco além. Qual é e qual será o papel da UERN no respeito à diversidade de gênero?
CM: Outra questão que é pauta de discussão constante na Uern. Fomos a primeira Universidade a instituir o nome social, antes mesmo de se tornar um direito garantido por lei em todo o território nacional. Temos o primeiro ambulatório LGBTT+ do Rio Grande do Norte e a nossa política de inclusão também está voltada para o acolhimento destas pessoas, que tantas vezes são marginalizadas pela sociedade simplesmente porque alguém não aceita a sua forma de ser, de se vestir ou de amar. Enquanto não entendermos e aprendermos a respeitar o outro como ele é, com suas individualidades e particularidades, esses problemas irão existir. E é por isso que trabalhamos na perspectiva de colocar a diversidade de gênero como uma prioridade, sendo um tema trabalhado de forma transversal, sob diferentes aspectos, através de ações de ensino, pesquisa e extensão, e contribuindo para uma sociedade mais humana.
Pop Up: Como a senhora avalia a gestão que está por terminar, inclusive sendo concluída por outra mulher, a professora Fátima Raquel?
CM: Estamos fechando um ciclo de oito anos, onde os avanços são muitos e significativos. O professor Pedro Fernandes está deixando um legado muito importante, que é a consolidação da política de assistência estudantil, o reconhecimento de todos os cursos de graduação e a regularização de todo o patrimônio da Universidade. Hoje todos os cursos da Uern são reconhecidos. Os estudantes, principalmente os que se encontram em condição de vulnerabilidade social, podem contar com uma política de assistência estudantil sólida e em expansão. Todos os imóveis da Uern estão regularizados.
Desde março de 2020, a professora Fátima Raquel conduziu muito bem a nossa instituição, e demonstrou pulso forte, especialmente durante a pandemia, onde a Uern assumiu um papel primordial para o enfrentamento do Covid-19 no interior do Rio Grande do Norte. Todo o seu conhecimento na área da saúde nos conduziu a decisões acertadas, que serviram de subsídio inclusive para outras universidades. Hoje, com certeza, somos uma universidade mais forte, mais inclusiva, mais respeitada graças à coragem, dedicação e determinação dos professores Pedro Fernandes, Aldo Gondim e Fátima Raquel. A eles, todo o meu reconhecimento e agradecimento.
“É possível transformar a sua vida e a vida de outras pessoas através da educação”
Pop Up: Vivemos tempos incomuns, o que ocasionou também uma campanha inédita. A senhora não pode estar conversando com o corpo acadêmico olho no olho por causa da pandemia. Como foi atravessar esse momento tendo que apresentar-se como candidata no mundo virtual?
CM: De certa forma, a pandemia nos proporcionou novas possibilidades. Nunca estivemos tão distantes, e ao mesmo tempo tão próximos. Se por um lado não pudemos conversar olho no olho, não pudemos contar com o apoio e os abraços calorosos de nossos alunos e colegas, por outro lado, conseguimos chegar mais longe. Conseguimos ouvir cada categoria, cada campus, cada faculdade, e foi com base nessas conversas que conseguimos fechar a nossa carta programa, que embasa o nosso programa de gestão.
Se Deus quiser, em breve, poderemos voltar a nos encontrar, e aí sim, faremos esses momentos de diálogo presencialmente, e assim, construiremos uma universidade cada vez mais forte.
Pop Up: A campanha sofreu judicialização, inclusive. Como a senhora avaliou esse momento em que o pleito teve que ser adiado?
CM: A democracia prevaleceu. A comunidade acadêmica expressou, no voto, a proposta de gestão que considerou a melhor para a Uern nos próximos anos. Foi um resultado expressivo, com vitória nos três segmentos. Isso nos deixou muito felizes.
Pop Up: Aliás, como falamos em pandemia, a UERN tem desempenhado um brilhante papel no combate à Covid por diversas frentes. Isso implica dizer também que a senhora será reitora justamente num cenário entre a pandemia e, se Deus quiser, pós-pandemia, pós aulas remotas. Como a senhora vislumbra esse cenário?
CM: Desde a declaração da pandemia, desde a suspensão das nossas aulas presenciais, sonhamos com o momento em ter nossas salas de aula cheias de alunos, nossos laboratórios funcionando em sua plenitude, nossos estudantes desenvolvendo pesquisa e extensão. Temos muita esperança de que, com a vacinação, esse momento esteja cada vez mais próximo. E com ele, novos desafios se concretizam. Sabemos que nada será como antes. Como falei anteriormente, a pandemia nos forçou a vislumbrarmos novas possibilidades, e acredito que estamos prontos para esse novo cenário.
Pop Up: Da sua carta programa durante a campanha, o que a senhora destacaria como prioridade de realização logo para o primeiro ano de mandato?
CM: A nossa autonomia financeira. Esse é um sonho perseguido há décadas e que, se Deus quiser, estaremos concretizando muito em breve. Será o quinto marco da história da nossa Uern.
Pop Up: Esse destaque seria algo mais urgente a desenvolver na Universidade ou também já é o principal legado que a senhora pretende deixar?
CM: É um legado não somente da nossa gestão, mas do trabalho de muitas pessoas ao longo dos anos. A autonomia financeira vai nos possibilitar a execução do planejamento anual, vai nos permitir projetar a Universidade em curto, médio e longo prazo, mas ela vem acompanhada de muitas responsabilidades. Para mim, será uma honra conduzir essa Instituição, ao lado do professor Chico Dantas, nessa nova era da nossa instituição.
Pop Up: Plano de cargos, carreira e salário. O servidor da UERN clama há mais de uma década por melhorias nesse aspecto. É possível que isso aconteça em sua gestão?
CM: Este é um antigo sonho dos servidores que está bem próximo de ser realizado. Atualmente o plano de cargos dos servidores técnicos e docentes vem sendo discutido por uma comissão mista, composta por representantes da Uern e do Governo do Estado, e acredito sim que será instituído nos próximos anos. A gestão da universidade tem pautado esses pontos junto ao Governo e acreditamos no compromisso assumido pela governadora Fátima Bezerra de priorizar essa pauta tão importante para a comunidade uerniana.
Pop Up: Como Cicília Maia se vê daqui a 4 anos?
CM: Com o mesmo entusiasmo daquela menina que um dia sentou em um banco dessa Universidade e ali descobriu que é possível transformar a sua vida e a vida de outras pessoas através da educação.
Fotos cedidas.