Durante a última semana, a partir do lançamento da edição atual do reality show Big Brother Brasil, no dia 25 de janeiro, os termos cancelamento e cultura do cancelamento cresceram 80% nas buscas. Isso porque o assunto está sendo discutido diariamente pelos participantes do BBB, que inclui algumas celebridades e artistas famosos.
Muitas pessoas já ouviram falar sobre cancelamento, principalmente aquelas que passam bastante tempo nas redes sociais, mas nem todo mundo está familiarizado com o termo nem com seu significado e suas consequências.
Por isso, entrevistamos Rodrigo Nejm, diretor de Educação da ONG SaferNet – instituição sem fins lucrativos com objetivo de promover uma internet positiva e mais segura para todos. Confira abaixo:
Dialogando: No meio digital, o que é um cancelamento?
Rodrigo: É um fenômeno nascido na internet que transforma a rede em um tribunal, sem direito à defesa e ao espaço para o aprendizado e o contraditório, uma reação à percepção de impunidade nas redes. Fora da internet, seria o equivalente a cortar relações pessoais ou ignorar uma pessoa.
D: Esta prática é recente? Existe um ponto de partida? Quando começamos a observar esse comportamento na internet?
R: A internet é um espaço de ampla visibilidade para as pessoas compartilharem suas produções, suas ideias e seus momentos. Conforme aumenta a visibilidade pública, maior é a possibilidade de julgamentos e monitoramento pelas demais pessoas. Na internet, tudo pode ganhar uma escala gigante em poucos segundos. Ignorar ou deixar de seguir alguém sempre aconteceu, mas o cancelamento, como conhecemos hoje, é um debate que ganhou força ao redor do mundo em 2019, quando ativistas dos direitos humanos e mobilizadores sociais começaram a usá-lo como estratégia para pressionar personalidades e empresas que não possuíam políticas contra a discriminação e a favor da diversidade.
Com bons resultados, a estratégia começou a ser adotada no dia a dia como resposta a uma percepção muito comum entre as pessoas: produzir, compartilhar e interagir com conteúdos com teor discriminatórios, que violam os direitos humanos, não dão em nada. Então se o poder público e as autoridades pouco fazem para combater esse problema, por que não usar a força da internet para pressionar os responsáveis a agirem?
É uma forma de tentar fazer justiça. Não é a melhor forma, mas alivia a sensação de impunidade. É também um mecanismo de sanção social e reprovação pública. Como todo fenômeno, no entanto, a cultura do cancelamento vem revelando suas contradições.
Todos os dias, pessoas são canceladas por exporem comportamentos e atitudes ofensivos, violentos, discriminatórios ou criminosos na rede. Todos os dias pessoas também sofrem exposing. Uns cancelam, outros absolvem. Mas será que só existem esses dois caminhos?
D: O cancelamento é benéfico para o ambiente digital?
R: O cancelamento é controverso, porque não dá espaço para aprendizado e para o contraditório nem permite que a pessoa cancelada tenha seu direito de defesa garantido. O cancelamento é também o linchamento da era digital, que tem como objetivo central punir e excluir o outro. E esse justiçamento feito na velocidade de um post também pode cometer injustiças. Isso não quer dizer que você não possa falar publicamente sobre uma violência cometida por outra pessoa. Quer dizer apenas que toda luta pela promoção dos direitos humanos também passa pela escuta ativa e pelo diálogo aberto.
D: O cancelamento está relacionado ao cyberbullying? Acredita que a prática pode incitar comportamentos nocivos?
R: Está mais relacionado à intolerância e incapacidade de lidar com visões plurais e discordantes. É preciso sempre indagar: o cancelamento ocorre por causa de uma opinião ou um ponto de vista de que as pessoas discordam ou, porque de fato a pessoa teve um comportamento ofensivo, discriminatório e violento?
Assim como falas discriminatórias não são opiniões, mas sim um discurso de ódio, é preciso também refletir sobre o que nos contraria. Existem temas complexos que não cabem o que é certo ou errado. E nessa hora temos que testar nossa capacidade de discordar do outro. Ninguém é obrigado a ter mesma opinião sobre os mesmos assuntos.
O cancelamento não pode ser um caminho para descartar pessoas apenas porque elas não fazem coro ao que pensamos.
D: Existe alguma solução para resolver essa questão da cultura do cancelamento?
R: Em vez de cancelar uma pessoa que teve um comportamento errado ou produziu um conteúdo ofensivo, você pode mobilizar pessoas para debater violências, comportamentos e atitudes ofensivos, discriminatórios ou criminosos na rede, apoiando causas, criando campanhas e se engajando em protestos. Se a pessoa cancelada estiver associada a alguma marca ou se a própria empresa for o alvo do cancelamento, vale defender o não consumo de marcas e empresas que apoiam ou têm práticas discriminatórias.
Seja honesto e pergunte a si mesmo o que você quer ao expor o outro. Lembrando que se for um crime ou uma violência contra os direitos humanos, você pode e deve denunciar no site www.denuncie.org.br. E se esses conteúdos violentos forem algum gatilho para você, considere também deixar de interagir com as postagens da pessoa nas redes sociais.
Quando você cancela alguém, você está impedindo que a outra pessoa aprenda e reflita sobre porque o comportamento e as atitudes que ela cometeu não são aceitáveis. Isso não quer dizer que você deva se omitir ao discurso de ódio, a crimes ou a violações aos direitos humanos. Alertar sobre pensamentos e comportamento que possam perpetuar discriminações é um caminho inteligente e possível para enfrentá-los.
Fonte: https://www.dialogando.com.br/comportamento/cultura-do-cancelamento-o-que-significa-ser-cancelado-na-internet