A discussão acerca da responsabilidade penal das pessoas jurídicas provoca um intricado debate no âmbito da doutrina acerca dos pressupostos dogmáticos e político-criminais da opção por atribuir aos entes morais uma responsabilidade de caráter criminal. Alguns autores defendem arduamente a necessidade do estabelecimento de um sistema de imputação suficientemente capaz de alcançar este fim, enquanto outros dedicam severas críticas às propostas até então existentes e, mais profundamente, em relação à própria existência de uma dita responsabilidade penal própria das pessoas jurídicas.
A problemática pode ser evidenciada a partir do confronto, no âmbito da doutrina penal, entre às máximas “societas delinquere potest”, conceito atualmente emergente, em contraposição ao anteriormente sedimentado “societas delinquere non potest” [1]
Mormente a discussão no setor doutrinário seja farta, fato é que a legislação brasileira instituiu a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, o que pode ser identificado tanto da leitura do texto infraconstitucional, quanto dos mandamentos insculpidos na Magna Carta. No plano da legislação federal, a lei 9.605/98, em seu artigo 3º versa explicitamente acerca da responsabilidade penal atribuível aos entes morais. O texto constitucional, por sua vez, no artigo 225 §3º, sujeitou cabalmente as pessoas jurídicas às sanções penais correspondentes às lesões praticadas contra o meio ambiente.
Embate doutrinário
Não obstante a legislação brasileira ter estabelecido a responsabilidade penal da pessoa jurídica, a situação na perspectiva da doutrina nacional apresenta ampla divergência [2], o que conduz à elaboração de diversos argumentos contrários ou favoráveis ao estabelecimento da responsabilidade penal das pessoas jurídicas no direito interno.
Dentre os especialistas que abordaram o tema com certa profundidade, vários foram aqueles que teceram importantes considerações, como é o caso do professor Paulo César Busato, Sérgio Salomão Shecaira, Alamiro Velludo Salvador Netto e Fernando Galvão, autores que se mostram favoráveis ao estabelecimento de uma estratégia de imputação penal às pessoas jurídicas, ainda que notáveis diferenças possam ser depreendidas em suas construções teóricas.
No entanto, os professores Luís Greco, Alaor Leite e o saudoso René Ariel Dotti, são alguns dos personagens da doutrina que apresentam duras críticas aos fundamentos da responsabilidade penal das pessoas jurídicas.
Luís Greco, por exemplo, argumenta que a pessoa jurídica não possui mente ou corpo e, por conseguinte, não há capacidade de decisão, tampouco de agir, sendo imprescindível, portanto, a ação de uma pessoa física em especial para a atribuição de responsabilidade [3].
Aduz que o critério da autorresponsabilidade [4] performa uma “tentativa de obscurecer” a atribuição mencionada anteriormente, que condiz com o critério da heterorresponsabilidade, de modo que, ainda que se sustente que a responsabilidade da pessoa jurídica seja originária, como quer os modelos de autorresponsabilidade, inescapável é a dependência das decisões e atos das pessoas físicas, retornando, assim, ao paradigma da responsabilidade derivada [5].
De mais a mais, sustenta que a pena aplicada em decorrência do crime não pode fundar-se em uma imputação de atos de terceiros, uma vez que a pena, compreendida como uma reação legítima que atinge os direitos inatos de uma pessoa não pode ser aplicada para atingir direitos personalíssimos de outrem, pois tal circunstância aviltaria ao princípio de culpabilidade [6], uma vez que inexiste culpabilidade personalíssima por ato de terceiro.
Ainda, conforme aponta Busato, René Ariel Dotti apresenta uma crítica em tom bastante ácido ao afirmar que a responsabilidade penal da pessoa jurídica é “tipo ilusório de capacidade criminal, absurda ficção legal, esdrúxula, desastrada interpretação de dispositivos constitucionais, descaminho intelectual, mistura de azeite e vinagre” [7].
No âmbito do embate dogmático, Sérgio Salomão Shecaira ensina que as premissas doutrinárias formuladas em prol do rechace à responsabilidade penal das pessoas jurídicas podem ser agrupadas em quatro argumentos principais [8], sendo: a) não há responsabilidade sem culpa; b) violação do princípio da personalidade das penas; c) impossibilidade de aplicação de penas privativas de liberdade; d) impossibilidade de a pessoa jurídica arrepender-se, intimidar-se ou ser reeducada.
O lado da doutrina que apresenta um pensamento favorável ao estabelecimento da referida responsabilidade enfrentou tais empecilhos dogmáticos. Ao primeiro argumento, Busato [9] afirma que a capacidade de culpabilidade nunca foi um impeditivo para a ação do sistema penal sobre o indivíduo, o que é bem ilustrado em relação aos atos “perigosos” praticados por enfermos mentais e os menores de dezoito anos completos, de modo que seria perfeitamente possível a aplicação de medidas de segurança às pessoas jurídicas, uma vez que no desenvolver de suas atividades os entes coletivos são capazes de violar significativamente bens jurídicos dos mais importantes elegidos pela sociedade organizada e, em certa medida, em um patamar inclusive superior ao que é possível a um indivíduo enfermo mental ou adolescente, como bem ilustra os fatídicos eventos de Brumadinho e Mariana no estado de Minas Gerais, conduzindo, assim, ao argumento político-criminal da necessidade de responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas.
David Baigún, professor argentino que elaborou todo um sistema especialmente voltado para a imputação de responsabilidade das pessoas jurídicas, resolve o problema substituindo a categoria da culpabilidade pertinente aos seres humanos por um conceito de responsabilidade social [10] específico para as pessoas jurídica, em que preenche a partir de dois momentos de análise: 1) atribuibilidade da ação, em que se realiza um juízo de distinção entre o ato da pessoa física e o ato da pessoa jurídica; 2) exibilidade de outra conduta, em que se analisa as alternativas concretas de atuação da pessoa jurídica diante do cenário da prática do crime.
Quanto ao segundo argumento informado por Shecaira, parece não constituir um verdadeiro óbice aos modelos que adotam um sistema de imputação pautado na autorresponsabilidade, uma vez que não haveria qualquer transferência da culpa e, assim sendo, não há violação do princípio da personalidade das penas. Em outras palavras, uma vez que o injusto é cometido como expressão da atividade própria da pessoa jurídica e não há transferência do ato da pessoa física para a pessoa jurídica, como geralmente ocorre nas formulações que operam com o conceito de heterorresponsabilidade, a pena é aplicada diretamente ao ente moral em decorrência da atividade que lhe pertence.
Quanto ao terceiro argumento, Busato afirma [11] que não há racionalidade em sustentar que a responsabilidade penal, seja de um ente físico ou de um ente moral, estaria adstrita à possibilidade de aplicação da pena de prisão, uma vez que o banimento da pena de prisão não conduz, per se, à extinção do direito penal. Por conseguinte, uma vez possível a aplicação de penas restritivas de direitos ou mesmo a imposição de medidas de segurança às pessoas jurídicas que incorram na prática de crimes, estaria evidenciada a reação do sistema penal, adequada conforme as particularidades objetivas do caso concreto e respeitando as possibilidades ontológicas das pessoas jurídicas.
Ainda no interregno da pena celular, argumenta-se que a prisão foi duramente criticada pela doutrina penal tanto no passado quanto é nos dias atuais [12], de modo que carece de sentido adstringir a incidência do sistema penal somente quando há a possibilidade de se impor uma reprimenda de caráter eminentemente de sujeição sobre o corpo físico do delinquente.
Quanto ao quarto e último argumento, umbilicalmente ligado aos fins da pena, Gustavo Britta Scandelari observa que:
Não se sabem quais seriam os resultados, a longo prazo, da adoção da RPPJ em larga escala no Brasil. Mas, caso seja feita e aceita uma simples transferência das teorias clássicas da pena para fundamentar tal responsabilização, não haverá razão para acreditar que elas não arrastariam consigo a permanente frustração das finalidades que declaram perseguir. Já se sabe que as penas criminais não são eficazes como deveriam ser para prevenir (a prevenção é simbólica) crimes e ressocializar (a ressocialização ainda é utópica) pessoas naturais. Insistir nessas finalidades para as pessoas jurídicas sem nenhuma tentativa de ajuste provavelmente também levará ao fracasso[13].
Destarte, se os perquiridos fins da pena apresentam problemas ainda irresolutos no âmbito da responsabilização das pessoas físicas, não parece razoável a utilização de tais construções teóricas, individualmente, como impeditivo para a obstar a responsabilização penal das pessoas jurídicas.
Considerações finais
Conforme visto, o tema da responsabilidade penal das pessoas jurídicas provoca certa polêmica no âmbito da doutrina. No entanto, uma vez que a Constituição da República adota a perspectiva que responsabiliza penalmente as pessoas jurídicas, bem como há na legislação federal certo microssistema de tipificação penal de atividades delitivas que podem ser levadas a cabo pelas empresas (crimes ambientais), conclui-se que os esforços doutrinários devem abandonar, ainda que não totalmente, o debate acerca do se é possível responsabilizar penalmente as pessoas jurídicas para, consequentemente, concentrar esforços no como responsabilizar, no plano do direito penal interno, os entes morais.
Referências bibliográficas
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LEITE, Alaor. Observações provisórias sobre a responsabilização penal das pessoas jurídicas. In: Responsabilidade penal das pessoas jurídicas: seminário Brasil-Alemanha / organização Paulo César Busato; coordenação Luís Greco, Paulo César Busato, — 1. ed. — Florianópolis [SC]: Tirant Lo Blanch, 2018, p. 77-88.
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SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica, 3. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011.
[1] A este respeito, sugere-se a leitura da tese de doutoramento de Víctor Martínez Patón, defendida perante a Universidad Autónoma de Madrid e a Université Paris Ouest Nanterre La Défense, que em breve síntese argumenta que a máxima societas delinquere non potest foi uma criação de Franz von Liszt, que instrumentalizou o conceito para fins argumentativos no momento da publicação da primeira edição do seu Handbuch, de modo que não existe nenhuma relação com direito romano ou medieval.
[2] Nesse sentido, ver: PRADO, Luiz Régis; DOTTI, René Ariel. Responsabilidade penal da pessoa jurídica. Em defesa do princípio da imputação penal subjetiva. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
[3] Cf. Greco, 2018, p. 70.
[4] Sobre a diferenciação entre autorresponsabilidade e heteroresponsabilidade no âmbito da discussão em que envolve a responsabilidade penal das pessoas jurídicas, ver: Cf. Galvão, 2021, p. 21-53.
[5] Cf. Greco, 2018, p. 70.
[6] Cf. Greco, 2018, p. 71-72.
[7] Cf. Busato, 2018, p. 40.
[8] Cf. Shecaira, 2011, p. 91-92.
[9] Cf. Busato, 2013, p. 48-53.
[10] Cf. Baigún, 2000, p. 119-166.
[11] Cf. Busato, 2018, p. 55-58.
[12] Por exemplo, ver: BANDEIRA, Esmeraldino. Succedaneos da prisão. In: BANDEIRA, Esmeraldino. Estudos de política criminal. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1912. p. 99-142; e BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão — Causas e alternativas / Cezar Roberto Bitencourt. — 5. ed. — São Paulo: Saraiva, 2017.
[13] Cf. Scandelari, 2018, p. 111.