Falta, por parte do governo, um direcionamento concreto sobre a estratégia a ser seguida pelo país nessa mudança
Cássio Carvalho e Alessandra Cardoso
A recente auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), elaborada por duas unidades especializadas em energia da instituição, jogou luz na insuficiente e contraditória ação do governo federal para a condução da transição energética no país. Em suas quase duzentas páginas, foram reunidas e avaliadas estruturas de governança, sistema de financiamento, aspectos de justiça e inclusão social, além de aspectos setoriais e temas tecnológicos da agenda da transição energética brasileira.
A conclusão aponta para a falta, por parte do governo, de um direcionamento concreto e pactuado quanto à estratégia a ser seguida pelo país nesta transição. No tema do financiamento, a análise foi certeira ao apontar o desequilíbrio dos investimentos públicos entre combustíveis fósseis e fontes renováveis de energia, as distorções na matriz brasileira de subsídios às fontes de energia e o subaproveitamento da renda petroleira para o financiamento da transição energética.
Não é de hoje que o governo brasileiro aposta na expansão da oferta de petróleo e gás natural, sob a alegação de ser um setor vital para a economia brasileira e para o financiamento de políticas públicas. Contudo, a afirmação, que encontra eco no imaginário desenvolvimentista, carece de uma avaliação baseada em critérios nítidos e explícitos que a sustentem. Mais recentemente, tendo a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) na linha de frente, o governo passou a defender a tese de que o Brasil precisa ampliar a exploração do petróleo para garantir a transição energética doméstica e global. No entanto, a auditoria do TCU ajuda a elucidar que a história não é bem assim.
O aumento da oferta brasileira de petróleo, seus derivados e gás natural é ancorado em volumosos investimentos públicos, se comparados às fontes renováveis de energia. Um exemplo disso é o Novo Programa de Aceleração e Crescimento (PAC), que prevê R$ 385,6 bilhões aos combustíveis fósseis, ao passo que as fontes renováveis devem receber R$ 210,7 bilhões. Também é possível observar essa discrepância no Plano Plurianual (PPA) 2024-2027, onde os recursos previstos para o Programa Transição Energética foram de R$ 937,8 milhões ao longo dos quatro anos – um valor que representa apenas 0,2% dos recursos alocados no Programa Petróleo, Gás, Derivados e Biocombustíveis, que contará com R$ 478,9 bilhões ao longo do mesmo período.
Tal desproporção coloca o Brasil em desacordo com práticas globais. Em países como Alemanha, China e Estados Unidos, os recursos alocados para fontes renováveis superam a metade dos investimentos no setor de energia. Essa diferença não é apenas financeira, mas estratégica. A incapacidade de competir globalmente em termos de energia renovável não compromete apenas a posição geopolítica brasileira, mas impacta negativamente a atração de investimentos externos, traz risco a uma possível reindustrialização do país e coloca em xeque o cumprimento das metas e acordos climáticos que somos signatários.
Outro alicerce da produção de petróleo e gás natural são os subsídios, considerados pelo TCU como distorções da matriz energética brasileira, já que “favorecem desproporcionalmente as fontes de energia fósseis comparativamente às renováveis” e atuam numa espécie de barreira para a expansão das renováveis, limitando a geração de “inovação tecnológica, externalidades positivas e ganhos de escala”.
Em outras palavras os subsídios têm possibilitado uma espécie de regressão energética na matriz brasileira, e um exemplo disso são as termoelétricas a gás natural, que têm recebido volumosos subsídios para aumentar sua capacidade instalada e de geração na matriz elétrica, mesmo diante de um elevado potencial renovável no país. O relatório cita a sétima edição do monitoramento dos subsídios oferecidos pelo governo federal às fontes fósseis e renováveis no Brasil, elaborado pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) que mostrou que a cada R$ 1 gasto em fontes renováveis, R$ 4,52 são oferecidos aos fósseis.
Se, de um lado, subsídios e priorização no PAC e PPA a investimentos em fósseis trazem dubiedade e fragilidade ao impulsionamento de energias renováveis, o subaproveitamento da renda oriunda do petróleo desmonta o argumento de que o país precisa desses recursos para a transição energética. Como chama atenção o relatório, “diante de um cenário de restrição fiscal e aumento do endividamento público, a receita petrolífera nacional não se mostra como uma fonte relevante para financiamento da transição energética”.
A análise do Tribunal vai além, e mostra que parte dessa renda petroleira, que deveria sustentar políticas públicas no país, por exemplo, por meio do Fundo Social do Pré-Sal, direcionando parte desses recursos para áreas estratégicas, como educação, saúde e para projetos de desenvolvimento sustentável e de combate às mudanças climáticas, “não tem sido usado conforme o previsto, com parte dos recursos sendo direcionada para objetivos estranhos à sua criação, como o abatimento da dívida pública.” Nesse ponto, mais uma vez, desnuda-se a fragilidade dos argumentos defendidos pelo governo, representados pela EPE, de que o aumento da oferta é a chave para a resolução dos dilemas sociais que o Brasil carrega há séculos.
Em termos práticos, a auditoria do TCU recomenda no Acórdão Nº 2470/2024 ao Ministério de Minas e Energia que, no prazo de seis meses (180 dias), articule esforços internos ao governo para “revisar a estratégia de financiamento da transição energética brasileira com vistas a mitigar o subaproveitamento da renda petrolífera para financiamento da transição energética, o desbalanceamento dos investimentos públicos entre energias fósseis e renováveis e as distorções na matriz de subsídios energéticos”.
É evidente que os caminhos para a revisão da transição energética no Brasil são complexos e desafiadores, como bem trouxe o referido relatório de auditoria. Nem por isso, podemos deixar de cobrar maior transparência relativa aos diversos incentivos de natureza fiscal que têm como beneficiárias as empresas do setor de óleo e gás. Além de problematizar o desafio da reforma global dos subsídios aos fósseis, como uma medida central para acelerar a transição energética, é fundamental ampliar a capacidade fiscal dos países na direção de financiar, com recursos novos, adicionais, acessíveis e livres de endividamento, seus gastos crescentes com mitigação, adaptação, perdas e danos.
Por fim, tão urgente quanto a reforma multilateral dos subsídios aos combustíveis fósseis é a construção de uma estratégia nacional para o uso da renda do petróleo, que depende, tão e unicamente, da decisão do Executivo Federal de priorizar a destinação dos recursos oriundos da renda petroleira para a urgente transição energética e adaptação às mudanças climáticas.
*Alessandra Cardoso é assessora política do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos).
**Cássio Carvalho são assessor político do Inesc.
***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do Brasil do Fato.
Edição: Thalita Pires