Nos últimos tempos tem-se verificado um movimento doutrinário com o objetivo de conferir maior unicidade ao processo administrativo no Brasil perante os diversos órgãos de controle que compõem a federação. Tal movimento, resulta da percepção a respeito da complexidade do tema que envolve a multiplicidade de órgãos de controle e a ausência de interligação entre eles.
Resultado desse cenário é a possibilidade de aplicação de mais de uma medida sancionatória pelo mesmo fato, bem como a aplicação de normas dissonantes em matéria processual administrativa, como esclarece a doutrina [1].
Veja-se, por exemplo, a celebração do termo de compromisso na lei nº 13.506/2017, que trata do processo sancionador das instituições financeiras. Apesar da lei representar um avanço no tema, obriga que o Banco Central comunique ao Ministério Público e demais órgãos de controle, que poderão iniciar inquérito civil ou processo administrativo dentro de sua competência (artigos 13 e 15).
Essa previsão prejudica o interesse do administrado na celebração do termo de compromisso em razão da possibilidade de sanções em outras esferas. Mas não é somente a sanção a problemática da ausência de interligação entre os órgãos de controle. A questão que envolve o processo administrativo também é elementar para gerar confusão na cabeça de qualquer pessoa que se envolva com o tema.
Isso porque os artigos 22, I e 24, XI da CRFB, estabelecem competência privativa da União para legislar sobre direito processual e concorrente entre União, Estados e Distrito federal para legislar sobre procedimentos em matéria processual. Já o direito administrativo não está inserido de maneira latu sensu na distribuição de competências — tal como encontra-se o direito civil, por exemplo —, mas somente de maneira strictu sensu através de algumas de suas matérias típicas como licitação (artigo 22, XXVII) e desapropriação (artigo 22, II), o que torna complexo e não uniforme o tema da competência legislativa sobre processo administrativo [2].
Acrescente-se a isso que a CRFB de 1988 marcou o processo de descentralização do Estado e criação de agências reguladoras — além de órgãos e autarquias independentes, como os Tribunais de Contas e Procons — criando instrumentos de controle estatal de múltiplas competências. Resultado desse processo é a existência atual de situação confusa em termos de organização e competência administrativa.
Diante desse cenário, foi editado o decreto 10.887/2021, que altera e atualiza o Decreto nº 2.181/1997. O novo decreto possui o objetivo de conferir maior uniformidade ao processo administrativo junto aos diversos órgãos de proteção e defesa do consumidor espalhados pelo país.
Dito isso, o objetivo desse artigo é analisar as alterações introduzidas pelo Decreto nº 10.887/21 e suas consequências no meio jurídico, obtendo conclusões que permitam afirmar se a aplicação das novas regras possibilita um avanço no processo sancionador no âmbito consumerista.
Principais alterações do Decreto nº 10.887/2021
Em primeiro lugar, destaque -se a redação conferida ao artigo 15, na qual busca-se conferir uniformidade aos processos que correm nos Procons locais quando o fornecedor tenha sido acionado em mais de um Estado pelo mesmo fato gerador.
Apesar do decreto não obrigar o Procon local a remeter o tema ao órgão coordenador, o dispositivo revela uma preocupação da administração com o tema e confere um passo importante para que no futuro haja maior alinhamento dentro da administração pública no exercício do dever- poder sancionador.
Em segundo lugar, o decreto formaliza o procedimento de averiguação preliminar antecedente ao processo sancionador (artigos 33-A e 33-B). Nesse ponto, o decreto regulamente e confere eficácia ao artigo 55, §4º do CDC, que trata justamente da prestação de informações prévias a caracterização da infração.
De fato, alguns Procons já aplicam o referido procedimento, como o Procon (SP) no auto de notificação previsto no artigo 3º. IV da portaria normativa nº 55/2019. Entretanto, não havia norma que sistematizasse o procedimento infralegal a ser seguido, o que acabava por resultar em insegurança jurídica para o administrado de não ver apurado corretamente o ato imputado, além de evidenciar inércia do poder público na elaboração de diretriz regulamentar.
Em terceiro lugar, o decreto possibilita que o auto de infração tenha tramitação eletrônica, inclusive no que diz respeito a intimação do administrado (artigo 42, §1º, I). Entretanto, para que esse dispositivo seja adequadamente aplicado, faz-se necessária regulamentação mais detalhada. O decreto em si não esgota o tema, tecendo somente linhas gerais sobre essa possibilidade.
Em quarto lugar, a nova legislação determina no artigo 38-A, que nas atividades econômicas de risco leve — nos termos da lei nº 13.874/2019, — a fiscalização em face do fornecedor deve sempre ter caráter orientador, garantida a dupla visita. Assim, antes da lavratura do auto de infração, o agente deve orientar o fornecedor das medidas a serem tomadas, realizando a dupla visita para verificar se a orientação foi seguida, sob pena de nulidade.
Por último, em quinto lugar, o decreto apresenta a possibilidade de ser nomeado amicus curiae, de ofício pela autoridade ou por requerimento das partes. Esse instrumento vem sendo utilizado com frequência desde sua inclusão no código de processo civil, sendo um ganho para a justiça sua possibilidade no processo administrativo.
Conclusão
A Lei nº 9784/1999 foi editada como uma tentativa de uniformizar o processo administrativo no país. Ainda que não seja obrigatória sua aplicação pelos estados e municípios, percebe-se que haver iniciativa na busca por unidade processual em matéria administrativa. Em 2018, a introdução de dez artigos à Lindb incorporou “regras de interpretação para guiar a aplicação do direito público”, como escreve Irene Nohara em uma das primeiras obras sobre o tema [3].
Nesse cenário, é que as inovações no decreto constituem mais uma engrenagem com novas regras que vossa, modernizar o sistema processual administrativo e sua aplicação de sanções.
Por outro lado, alguns temas poderiam ter sido abordados com maior incentivo, como a celebração de termo de ajustamento de conduta, ou ainda o estabelecimento de contagem de prazos do administrado em dias úteis como no processo civil brasileiro [4].
[1] Nesse sentido, Kleber Bispo dos Santos leciona que: “é uma questão muito complicada e delicada a possibilidade de aplicação simultânea de sanções por instâncias autônomas que não se comunicam e não levam em consideração a existência de outras esferas de responsabilização. Essa preocupação é muito pertinente e calha à fiveleta quanto ao tema da extensão e limites do acordo de leniência no que tange a outros sistemas de responsabilização. A nosso ver, em se tratando da sanção das pessoas jurídicas, as instâncias devem se comunicar, e indo mais além, em se tratando de acordo de leniência com a pessoa jurídica delatora, o mesmo deve, se possível, englobar todas as possibilidades de responsabilizações ou sanções à pessoa jurídica beneficiária, decorrentes do mesmo fato, podendo, inclusive, a depender das circunstâncias do caso concreto, surtir efeitos às eventuais responsabilizações das pessoas físicas representantes das pessoas jurídicas” (Acordo de leniência da lei de improbidade administrativa e na lei anticorrupção. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018. p. 147).
[2] Nesse sentido, Ricardo Marcondes Martins leciona que: “os artigos 22, I, e 24, XI, da CF de 1988 não tratam da competência para legislar sobre processo administrativo. A Constituição de 1988 disciplinou a competência para legislar das entidades federativas, principalmente, em quatro dispositivos: nos artigos 22, 24,25 e 30. Previu-se até o direito espacial, mas em nenhum deles o direito administrativo. Não foi esquecimento do constituinte: legislar sobre direito administrativo é decorrência lógica da autonomia política da entidade federativa expressamente prevista no artigo 18. Sempre que o constituinte quis excepcionar essa regra o fez expressamente -como, por exemplo, nos incisos II e XXVII do artigo 22. Não havendo referência expressa nos incisos I do artigo 22 e XI do artigo 24 ao direito administrativo, a regra geral permanece incólume: esses dispositivos só se aplicam à função jurisdicional. Legislar sobre processo e procedimento administrativos de cada entidade federativa compete à respectiva entidade”. (Estudos de Direito Administrativo Neoconstitucional. São Paulo: Malheiros. 2015. p. 321/322).
[3] NOHARA, Irene Patrícia. LINDB: Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, hermenêutica e novos parâmetros ao direito público. Curitiba: Juruá, 2018. Pg. 1
[4] Nesse sentido, o artigo 66, §2º da Lei nº 9.784/99, determina que os prazos expressos em dias se contam de modo contínuo, enquanto o artigo 23 do mesmo diploma determina que os atos do processo devem realizar-se em dias úteis e no horário normal de funcionamento da repartição na qual tramitar o processo. Ou seja: os atos da administração pública serão realizados em dias úteis, enquanto os atos do administrado serão realizados em dias corridos.