Por Lenio Luiz Streck e Marcio Berti
O Supremo Tribunal Federal retoma nesta semana o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo n.º 843.989 (Tema nº 1.199), que trata sobre a (ir)retroatividade da Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), em face das alterações promovidas pela Lei 14.230/21.
Dois ministros já votaram. O relator, ministro Alexandre de Moraes, votou pela irretroatividade da Lei de Improbidade, abrindo divergência o ministro André Mendonça, que votou pela retroatividade da norma, entendendo, inclusive, pela possibilidade de reversão de eventuais condenações por ato de improbidade transitadas em julgado mediante ação rescisória.
O Tema não deveria demandar maiores ilações, porém, como no Brasil um easy case pode se tornar um hard case, valem algumas reflexões.
A jurisprudência sempre relutou em afirmar a natureza sancionatória da Lei de Improbidade Administrativa, mesmo sendo incontestável o caráter sancionatório de suas penalidades. Aliás, desde que veio ao mundo, o capítulo III da Lei 8.429/92 trata “das penas”; logo, se é de pena que se trata — e desde sempre foi mesmo — negar o caráter sancionatório da Lei de Improbidade sempre foi um equívoco da jurisprudência, porque a pena não é outra coisa senão uma sanção imposta pelo Estado-Juiz.
Atento a isso e em face do mau uso da Lei de Improbidade Administrativa pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, o legislador promoveu inúmeras e profundas alterações na Lei 8.429/92, através da Lei 14.230/21. O legislador resolveu mostrar o espírito da lei. Ou seja: avisou ao julgador aquilo que a doutrina no mundo todo diz e dizia.
Disse o legislador: a ação por improbidade administrativa é repressiva e de caráter sancionatório, ou seja, a lei se autodeclara repressiva e sancionatória.
Em face disso, a discussão sobre a retroatividade das alterações promovidas Lei 14.230/21 não deveria ser nada além de um easy case; porém, estamos no Brasil. E aqui de um ser se faz um dever ser.
Disse o relator que “a corrupção corrói a República, a própria essência da democracia”. Concordamos. Porém, com a devida vênia, indagamos: por qual razão esse argumento poderia superar o teor explicito da lei?
Para nós, em face da dogmática, pensamos ser insustentável a tese da irretroatividade em face das alterações implementadas na Lei 8.429/92 pela Lei 14.230/21, porque a retroatividade da lei mais benéfica é princípio geral do Direito Sancionatório (lato sensu), nos termos do inciso XL, do artigo 5º, da Constituição da República.
Portanto, tratando-se inequivocamente de Direito Sancionatório, e havendo um princípio geral na Constituição estabelecendo a retroatividade da lei “penal” mais benéfica, não deveria existir espaço para dúvida quanto a retroatividade da Lei 8.429/92 com as modificações introduzidas pela Lei 14.230/21 (novatio legis in mellius). Por todos, lembramos da doutrina de Jacinto Coutinho e Alice Silveira, que defenderam a retroatividade da lei de improbidade aqui na ConJur.
Ora, se a retroatividade da lei mais benéfica é um princípio ínsito ao Direito Sancionador — e com assento constitucional — não há (ou pelo menos não deveria haver) margem para dúvida quanto a retroatividade da Lei 8.429/92 em face das alterações promovidas pela Lei 14.230/21.
Significa dizer, portanto, que o ponto de partida sobre a discussão acerca da retroatividade da Lei de Improbidade Administrativa deve se dar a partir do princípio de que a lei mais benéfica retroage para beneficiar o réu. Esse é o ponto. O argumento do ministro Alexandre de Moraes de que a corrupção corrói a República é válido no plano da moralidade, mas em uma democracia a moral não pode filtrar o Direito; é o Direito que deve filtrar os juízos morais[1]. É disso que se trata, portanto.
No Brasil, por vezes um easy case (caso fácil) é transformado em um hard case (caso difícil). E, pior, por vezes se torna um tragic case (caso trágico).
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[1] STRECK, Lenio Luiz. Precisamos Falar Sobre Direito e Moral. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2019, p. 11.